Pedras no meu sapato? Apanho-as todas e atiro-as com grande precisão e pontaria... assim, mesmo em cheio. Para fazer galo. Depois viro costas e sigo em frente.
AHAHAAHAHAHAHAHAHAHAH
É tão bom sonhar e puxar pelo nosso lado mais sombrio, sermos fortes e vingativos através do nosso alter-ego e realizarmos um filme bem à Tarantino.
Benjamin Biolay - "Dans La Merco Benz" Álbum Trash YéYé
Acordar e perceber que tem de ser mais um dia. Um dia em que lutas para que algo de diferente aconteça e não te deixe mergulhar na apatia monótona e sufocante. Queres respirar e abres a janela do carro... pufff! O cigarro do condutor vizinho misturado com o monóxido de carbono dos condutores vizinhos misturado com os perfumes dos condutores vizinhos. Que horror. Estás, Cláudia, estás encravada, sim, reprimida. Não consegues respirar, bem... profundamente. Acordas a pensar em como era bom ter o mar ali, logo ali, ao acordar. Poder pôr o pé na areia logo de manhã, antes de te dedicares a um dos teus sentidos da vida. Penso. "O que é que eu estou aqui a fazer?", meto a mudança e penso, "Mas por que é que sou mais uma num milhão que tenta entrar numa cidade sozinha num carro de tantos lugares?", e volto a pensar "Que direito tenho eu a poluir o ambiente, a julgar-me dona suficiente do Mundo e prepotente o suficiente para alugar um espaço fútil e desnecessário, para no fundo culminar tudo num tamponamento congestivo?", e ainda volto a pensar que poderia fazer, uma maluquice e idiotice bem benigna "Pst! Tu aí, desse carro, encosta o teu carro p'ra aí. Melhor! Vende-o! Passas a atravessar comigo todos os dias este elo tão ténue em que toda a gente se afunila e atropela... anda, e assim libertamos espaço e não contaminamos o ar que respiramos. Matamo-nos menos. Anda! Vem. Olha chama a outra pessoa do outro carro e diz-lhe para fazer o mesmo. Vem, combinamos, conhecemo-nos melhor, fazemos mais amigos. Para que nos fechamos cada vez mais? Vem, entra. Fica. Se quiseres...."
Piiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!! "Acorda pá! estás a dormir ainda??!!??? Anda com essa merd@!!! Carroça! Vê-se mesmo que és mulher!" Sobressalto-me... estava a sonhar claro. Embalada pelo Benjamin Biolay, tudo é mais possível. Penso "Palhaço do caraças, se pudesse, espetava-te com a carroça e logo verias como é que é ser mulher."
Respiro fundo... Fecho os olhos pouco tempo para não parar de novo. Meto mais uma mudança. Não escolho o caminho porque ele já está escolhido.
"Este final de Setembro, o mês dos meus anos, tem-me custado. Perguntas sobre perguntas acerca de mim mesmo e a angústia do sentido da vida e da forma como me relaciono com ela. O que posso fazer, o que devo fazer? (...) Os meus defeitos aparecem-me de forma muito clara e dolorosa. Não só os meus defeitos: as minhas insuficiências, os meus erros. Sempre imaginei que um livro resgatava tudo: não resgata. E no entanto continuo a escrever, como se esse acto contivesse em si a minha salvação. (...)
Vou-me olhando de forma cada vez mais distanciada e sem indulgência. A impressão, melhor: a certeza de haver falhado. O quê? Não estou deprimido, não me sobra tempo para depressões, sou apenas um homem, diante do seu espelho interior, que não gosta do que vê. O que poderia ter feito? O que deveria ter feito? Esta permanente tortura que a gente disfarça. A ideia recorrente que aquilo, quer dizer que a única coisa que a vida nos dá é um certo conhecimento dela que chega tarde demais, sempre tarde demais. Grandes cães que se entredevoram dentro de mim. (...)
Apetece-me desaparecer atrás das palavras, ser de facto o ninguém que sou: um nome apenas, numa capa. E deixar o resto para mim, dado que não tem nenhuma importância colectiva.
Agora é manhã e está sol. Nenhum ruído à minha volta. Se eu pudesse passar a vida a limpo, como diz o Drummond, corrigia quase tudo. Que pena não podermos emendar os dias, o que fizemos, o que somos. Um demónio qualquer distorceu-me tudo ou fui eu quem distorceu tudo?
Agora é manhã e está sol. Se eu fosse DEUS parava o sol sobre Lisboa, escreveu Fernando Assis Pacheco. "- Está solzinho, que horas são?" Esteves nossos diminutivos de que tanto gosto. Oxalá o sol continue parado sobre Lisboa, parado sobre mim e eu embalsamado nele. Vestido dele. Afogado nele. Se eu fosse Deus era uma carga de trabalhos, não lhe invejo a sorte.
Nada mudou e tudo mudou: como eu gostava de ser pragmático, em lugar de viver numa nuvem cujos limites, aliás, distingo mal. Ou então a nuvem sou eu. Gasoso. De que raio de substância sou feito? Estou a deixar a caneta correr ao gosto dela, sem policiar nada. Que faça o que lhe apeteça. O Sol desapareceu, voltou. Olho em volta, regresso ao papel. Está solzinho, que horas são? O Júlio Pomar - Aguenta-te e há alturas em que é difícil aguentar, Júlio. Que raio de destino, que sina. A voz dele - Como estás tu? e a lata de me perguntar isto a mim que nunca sei como estou, nunca soube como estava. - Como estás tu? é a pergunta mais difícil de responder do Mundo."
António Lobo Antunes, in crónica da Visão edição nº763 - 18 de Outubro de 2007 Se eu fosse Deus parava o Sol sobre Lisboa
Sábado chegou mais um hóspede a minha casa: o Xavier.
O Xavier é uma pequena peste, direi até um pequeno leão... o seu lado pueril faz com que fique embasbacada a observar as suas brincadeiras com tudo o que mexe... e até com tudo o que não mexe. Desde saltos e correrias desenfreadas, até loopings e mortais elásticos, o Xavier é um autêntico trapezista. Chega até a pendurar-se nas minhas cortinas de fitas, tal qual lianas, e anda suspenso de um lado para o outro tal qual Tarzan! Dei por mim a indagar comigo: mas que raio, deram-me um gato ou um macaco?!?
De repente, como se a sua energia dispendida esgotasse subitamente, o Xavier cai para o lado e hiberna horas e horas em qualquer posição. No meu colo, no meu ombro, na cama ao meu lado... olha para mim com os seus olhos cinzentos e lentamente, começa a fechá-los como se tivesse dopado por um alucinogénico qualquer.
Não se vestia de saia curta nem de decote exposto para ser considerada uma femme fatale, toda ela adornada por uma volúpia peculiar, como se o seu charme fosse tão natural como o ar que respirasse. Não era somente o seu palmo de cara. A sua atitude e postura tornavam-na um ser singular, tão irresistivelmente atraente que até fazia rodar cabeças involuntariadas pela lei da atracção e da tentação.
Ninguém deixava de repará-la. Nem mesmo a mulher mais universalmente "bonita". Atrever-me-ei a compará-la à sensualidade marcada da Anita Ekberg na Doce Vida, misturada com a beleza ingénua e pueril de Marilyn Monroe, ainda rematada por uns toques finais da infantilidade rebelde e erótica de Maria Schneider naquele Último Tango... Apesar da comparação ela era exclusiva, como qualquer mulher que por ser única o é, mas... ela era a mais exclusiva da exclusividade. A mais sensual da sensualidade. E por isto tudo, uma verdadeira femme fatale.
Esta femme fatale disfarçada de Miúda Marota atraía homens e mulheres que ambicionavam a sua carne, mas repelia homens e mulheres que não sustentavam ficar à sombra da sua presença. Uma noite, saiu à rua sozinha como sempre. Nem se importava assim tanto. Afinal não devia nada a ninguém, não estava sujeita às podridões que teimavam enfrentar o seu olhar... aquele olhar de lince que em tudo repara e que nada lhe escapa. Assim como se fosse um detector de almas. Ah... tantas que a rodeavam e não valiam sequer um segundo olhar. Nessa noite, comandada e embalada pelo seu melhor companheiro, aquele cujo nome deriva do árabe e que tem na sua cadeia um grupo hidroxi, ou seja, um grupo -OH. Vamos-lhe chamar Alcoxi (porque não?). O Alcoxi acompanhava-a constantemente e dava-lhe a força que ela precisava para enfrentar o mundo de cães babados e danados para a possuir. Com o Alcoxi era-lhe permitido igualmente abstrair-se da apatia e solidão, deixando-se levar pela música como se fosse um Dó maior a flutuar na pista de dança. O Alcoxi em grandes quantidades acentuava-lhe ainda mais a sua volúpia inata e marcava-lhe com maior relevo o seu olhar de matadora. Aquele olhar de femme fatale que atinge o alvo disfarçando que olha para o infinito.
Cai o primeiro pato. Aquele pato estúpido que sempre venerara embasbacadamente a Vénus que casualmente cruzava o seu caminho. Diz-lhe : (vamos chamar-lhe Pato)
Pato (P): O teu mistério atrai-me. Femme Fatale (FF): Ai sim? P: Sim. FF: E não receias que seja uma caixa de Pandora? P: Não. Tanta beleza não pode esconder todos os males do Mundo. Todos os males do Mundo não conseguem penetrar em tanta beleza. FF: Não é o que conta a lenda... P: Não quero saber o que diz a lenda. Quero saber de ti. Diz-me, gostas de mim? FF: .... (Espeta-lhe um beijo daqueles que até encostam contra a parede e o fazem sentar em cima do caixote de lixo.)
(...)
P: Há tanto que queria isto... FF: ... P: Esta sensação de déjà vu... vai repetir-se? Igual ao passado? FF: ... P: Fala. Diz-me. FF: ... P: Porquê? Porque sim? Porque, nada? Porque... talvez? Talvez quisesses mais uma vez extravasar a tua liberdade e moralidade condicionada pelos teus princípios? Talvez tivesses conseguido ultrapassar ou até esquecer momentaneamente a verdade que queres seguir? Só queria saber porquê e o quê? Fala. Diz-me. Não firmaste um pacto comigo, não. Não estou a reivindicar reciprocidade sentimental, não. Continuas livre, sim. FF: ...
Manteve-se aquele silêncio mudo e ensurdecedor. Silêncio que se traduziu em gestos e olhares cúmplices barulhentos o suficiente para abafar qualquer resquício de déjà vu sobre um passado que apesar de efémero, fortemente marcou o pato. O pato estúpido. O pato abafou tudo porque queria afastar o prenúncio do que viria a seguir. Ele não queria o que viria a seguir, apesar de já saber o que viria a seguir... A inevitabilidade acabaria por acontecer: