sexta-feira, outubro 19, 2007

Frima-te

"Este final de Setembro, o mês dos meus anos, tem-me custado. Perguntas sobre perguntas acerca de mim mesmo e a angústia do sentido da vida e da forma como me relaciono com ela. O que posso fazer, o que devo fazer? (...) Os meus defeitos aparecem-me de forma muito clara e dolorosa. Não só os meus defeitos: as minhas insuficiências, os meus erros. Sempre imaginei que um livro resgatava tudo: não resgata. E no entanto continuo a escrever, como se esse acto contivesse em si a minha salvação. (...)

Vou-me olhando de forma cada vez mais distanciada e sem indulgência. A impressão, melhor: a certeza de haver falhado. O quê? Não estou deprimido, não me sobra tempo para depressões, sou apenas um homem, diante do seu espelho interior, que não gosta do que vê. O que poderia ter feito? O que deveria ter feito? Esta permanente tortura que a gente disfarça. A ideia recorrente que aquilo, quer dizer que a única coisa que a vida nos dá é um certo conhecimento dela que chega tarde demais, sempre tarde demais. Grandes cães que se entredevoram dentro de mim. (...)

Apetece-me desaparecer atrás das palavras, ser de facto o ninguém que sou: um nome apenas, numa capa. E deixar o resto para mim, dado que não tem nenhuma importância colectiva.

Agora é manhã e está sol. Nenhum ruído à minha volta. Se eu pudesse passar a vida a limpo, como diz o Drummond, corrigia quase tudo. Que pena não podermos emendar os dias, o que fizemos, o que somos. Um demónio qualquer distorceu-me tudo ou fui eu quem distorceu tudo?

Agora é manhã e está sol. Se eu fosse DEUS parava o sol sobre Lisboa, escreveu Fernando Assis Pacheco.
"- Está solzinho, que horas são?" Esteves nossos diminutivos de que tanto gosto.
Oxalá o sol continue parado sobre Lisboa, parado sobre mim e eu embalsamado nele. Vestido dele. Afogado nele. Se eu fosse Deus era uma carga de trabalhos, não lhe invejo a sorte.

Nada mudou e tudo mudou: como eu gostava de ser pragmático, em lugar de viver numa nuvem cujos limites, aliás, distingo mal. Ou então a nuvem sou eu. Gasoso. De que raio de substância sou feito? Estou a deixar a caneta correr ao gosto dela, sem policiar nada. Que faça o que lhe apeteça. O Sol desapareceu, voltou. Olho em volta, regresso ao papel. Está solzinho, que horas são? O Júlio Pomar
- Aguenta-te
e há alturas em que é difícil aguentar, Júlio. Que raio de destino, que sina. A voz dele
- Como estás tu?
e a lata de me perguntar isto a mim que nunca sei como estou, nunca soube como estava.
- Como estás tu?
é a pergunta mais difícil de responder do Mundo."

António Lobo Antunes, in crónica da Visão edição nº763 - 18 de Outubro de 2007 Se eu fosse Deus parava o Sol sobre Lisboa

1 comentário:

Tânia Mealha disse...

... amarga e doce identificação... Vivo-te, percebo-te e transpiro-te!
A luz do sol brilha sempre mais dependendo de quem a vê, do local onde se está. Talvez em Novembro "o solzinho" exista sol ;)