Não se vestia de saia curta nem de decote exposto para ser considerada uma femme fatale, toda ela adornada por uma volúpia peculiar, como se o seu charme fosse tão natural como o ar que respirasse. Não era somente o seu palmo de cara. A sua atitude e postura tornavam-na um ser singular, tão irresistivelmente atraente que até fazia rodar cabeças involuntariadas pela lei da atracção e da tentação.
Ninguém deixava de repará-la. Nem mesmo a mulher mais universalmente "bonita". Atrever-me-ei a compará-la à sensualidade marcada da Anita Ekberg na Doce Vida, misturada com a beleza ingénua e pueril de Marilyn Monroe, ainda rematada por uns toques finais da infantilidade rebelde e erótica de Maria Schneider naquele Último Tango...
Apesar da comparação ela era exclusiva, como qualquer mulher que por ser única o é, mas... ela era a mais exclusiva da exclusividade. A mais sensual da sensualidade. E por isto tudo, uma verdadeira femme fatale.
Esta femme fatale disfarçada de Miúda Marota atraía homens e mulheres que ambicionavam a sua carne, mas repelia homens e mulheres que não sustentavam ficar à sombra da sua presença.
Uma noite, saiu à rua sozinha como sempre. Nem se importava assim tanto. Afinal não devia nada a ninguém, não estava sujeita às podridões que teimavam enfrentar o seu olhar... aquele olhar de lince que em tudo repara e que nada lhe escapa. Assim como se fosse um detector de almas. Ah... tantas que a rodeavam e não valiam sequer um segundo olhar.
Nessa noite, comandada e embalada pelo seu melhor companheiro, aquele cujo nome deriva do árabe e que tem na sua cadeia um grupo hidroxi, ou seja, um grupo -OH. Vamos-lhe chamar Alcoxi (porque não?). O Alcoxi acompanhava-a constantemente e dava-lhe a força que ela precisava para enfrentar o mundo de cães babados e danados para a possuir. Com o Alcoxi era-lhe permitido igualmente abstrair-se da apatia e solidão, deixando-se levar pela música como se fosse um Dó maior a flutuar na pista de dança. O Alcoxi em grandes quantidades acentuava-lhe ainda mais a sua volúpia inata e marcava-lhe com maior relevo o seu olhar de matadora. Aquele olhar de femme fatale que atinge o alvo disfarçando que olha para o infinito.
Cai o primeiro pato. Aquele pato estúpido que sempre venerara embasbacadamente a Vénus que casualmente cruzava o seu caminho.
Diz-lhe : (vamos chamar-lhe Pato)
Pato (P): O teu mistério atrai-me.
Femme Fatale (FF): Ai sim?
P: Sim.
FF: E não receias que seja uma caixa de Pandora?
P: Não. Tanta beleza não pode esconder todos os males do Mundo. Todos os males do Mundo não conseguem penetrar em tanta beleza.
FF: Não é o que conta a lenda...
P: Não quero saber o que diz a lenda. Quero saber de ti. Diz-me, gostas de mim?
FF: ....
(Espeta-lhe um beijo daqueles que até encostam contra a parede e o fazem sentar em cima do caixote de lixo.)
(...)
P: Há tanto que queria isto...
FF: ...
P: Esta sensação de déjà vu... vai repetir-se? Igual ao passado?
FF: ...
P: Fala. Diz-me.
FF: ...
P: Porquê? Porque sim? Porque, nada? Porque... talvez?
Talvez quisesses mais uma vez extravasar a tua liberdade e moralidade condicionada pelos teus princípios? Talvez tivesses conseguido ultrapassar ou até esquecer momentaneamente a verdade que queres seguir? Só queria saber porquê e o quê? Fala. Diz-me. Não firmaste um pacto comigo, não. Não estou a reivindicar reciprocidade sentimental, não. Continuas livre, sim.
FF: ...
Manteve-se aquele silêncio mudo e ensurdecedor. Silêncio que se traduziu em gestos e olhares cúmplices barulhentos o suficiente para abafar qualquer resquício de déjà vu sobre um passado que apesar de efémero, fortemente marcou o pato. O pato estúpido. O pato abafou tudo porque queria afastar o prenúncio do que viria a seguir. Ele não queria o que viria a seguir, apesar de já saber o que viria a seguir... A inevitabilidade acabaria por acontecer:
Ela virou as costas.
Mais uma vez.
terça-feira, outubro 02, 2007
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5 comentários:
mary, mary... e quem pretendes tu ser...
"P" ou" FF"?...
"You're waiting for Jimmy down in the alley
Waiting there for him to come back home
Waiting down on the corner
and thinking of ways to get back home"
...excelente escolha musical... :-)
Eu? Pretendo ser eu mesma... a CP ;)
Devido à ausência de emoção vocal na escrita, a malta nunca consegue perceber se os textos têm ou não o seu quê de autobiográfico...
"Show me how you do that trick
The one that makes me scream she said
The one that makes me laugh she said
And threw her arms around my neck"
...excelente escolha musical... :-)
"Oh, admirável mundo novo, que encerra tais criaturas!"
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