segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Sr. Morais

5 de Fevereiro de 2008
Carnaval
Super-Terça-Feira nos EUA

Este ano experenciei um Entrudo diferente dos anos anteriores. A verdade é que nunca entreguei grande importância a esta época: primeiro, porque durante 5 anos de formação, encontrava-me sempre embrenhada em matérias relativas à minha área para suceder-me razoavelmente nas provas; segundo, porque nunca enalteci de valor à arte de “mascarar”, às constantes palhaçadas histéricas e muito menos, a ser alvo de brincadeiras disfarçadas de inocentes quando “ninguém leva a mal”, principalmente as que se resumem a levar com ovos, água e demais podridões. Já chega o resto do ano levarmos sem querer, quanto mais agora absorvermos plenamente conscientes toda a porcaria que nos vai cair em cima.

Apesar disto, não desdenho tanto assim. Até acho engraçado, mas quando tenho espírito.

Neste bissexto, não tive espírito... e dispensei as palhaçadas.

Este ano comprometi-me e fui de bagagens relembrar as origens do meu patriarca. Numa terra bem longíqua, que nem as auto-estradas deram para encurtar, dei por mim rodeada de gente, costumes e sabores bem diferentes da vida cosmopolita. Senti, desde logo, a desigualdade vernácula quando me deparei com o nome da dita terra bem por trás dos montes: Vale de Gouvinhas. Que raio são Gouvinhas? (Serão couvinhas ditas depressa e com sotaque?) Permanecerei na interrogação: a tradução não vem no dicionário. A partir daí, sucederam-se palavras típicas estranhas ao meu léxico. Vista de fora, diziam que estava mascarada de criança, pela constante e insistente pergunta:

“- O que é isso?”

Durante este fim-de-semana prolongado, houve um dia que me marcou substancialmente. O dia estava planeado para ser preenchido por um passeio pelas aldeias fora, a visitar um amigo e uma feira típica.
Chovia torrencialmente e as temperaturas baixas denunciavam a localização geográfica. Ensinou-nos uma senhora da zona, já com idade suficiente para a sabedoria popular, que quando no dia 2 de Fevereiro (dia de uma santa que não me recordo o nome), a Santa ri -faz sol, no resto do Carnaval chora. Um riso bem sarcástico, pensámos nós em voz alta.
A sabedoria popular é inabalável na sua verdade e no dia 3 choveu a potes. (Resta-nos esperar por uma Páscoa bem solarenta, como diz o ditado)

Não obstante o dilúvio percorremos o souto e chegámos a Vinhais, à Feira do Fumeiro. As feirantes transmontanas estavam bem identificadas pela placa e indumentária comum à feira. Bem bonita por sinal. Este ano as regras eram diferentes, dizia quem costuma lá ir: os enchidos pesavam-se em duas balanças calibradas para todas as barraquinhas, a fim de evitar escamoteios numas gramas a mais; os preços estavam standardizados em todo o lado, para não obrigar os clientes a percorrerem as barraquinhas à procura do melhor preço:

Salpicão 40 €/Kg,
Alheira 8€/Kg,
Chouriça Doce 7€/Kg,
Presunto 20€/Kg,
Rijões (mesmo que Rojões = Torresmos),
Cuscos (farinha de trigo semelhante aos cuscus marroquinos),
Butelo (espécie de enchido com carne e osso),
Grelos;

e as feirantes usavam luvas.

No meio desta azáfama de fumeiro perguntei-me se a bendita ASAE conseguia insurgir-se no meio daqueles costumes em cú-de-Judas. A sua omnipresença foi confirmada pelo meu tio que me contou que tinham estado lá no dia anterior e tinham proibido a comercialização das cascas de feijão…
Implacáveis.

Era o último dia e, apesar da tempestade, a feira estava composta. Entretive-me a fotografar a tradição, quando irromperam uns caretos pelo meio dos feirantes e da população. Os caretos vestem-se com umas roupas típicas transmontanas, usam máscaras de madeira na cara e giram aos saltos, feitos loucos, adornados com guizos, e estão teatralmente preparados para assustarem as pessoas.

...

As compras estavam feitas e seguimos viagem até um restaurante onde nos serviram uma posta mirandesa salivante. (chicha – carne - de qualidade, acompanhada por rabas – tubérculo laranja, e chícharos – feijão frade).
Satisfeitos com a refeição, perguntámos ao dono do restaurante onde era a aldeia Macedo do Mato. Escreveu-nos duas terras que deveríamos passar antes de chegar a esta:

Limãos e

Binhas.

Bem, lá desafiámos o mau humor de S Pedro e seguimos estrada secundária até Santo Ambrósio. Nem Limãos e muito menos Limões à vista, com o carro na reserva, resolvemos mandar parar um carro e perguntar direcções. Isto porque o meu pai se rendeu às evidências e não quis arriscar desafiar o deserto sem gasóleo e com granizo a bater no vidro!

O Sr. do Opel Sucata mais velho que um Dois-Cavalos acudiu ao nosso ar desesperado e clarificou que
“era só boltar para trás, birar à esquerda, chega a Limãos, bira para Binhas à esquerda e chega logo a Macedo do Mato!”

Até parecia fácil. Inversão de marcha.
Continuámos caminho embevecidos com a simpatia e amabilidade do Sr.
Curiosamente seguiu o caminho à nossa frente. Aos tantinhos, reparámos que esperava por nós para nos indicar o caminho. Atingimos Limãos (um limão, dois limãos…), virámos, chegámos a Vinhas! (comprovava-se o sotaque) e o Sr esperava sempre pelo nosso carro para seguir.
O meu pai:
” - Segue, segue, filha, olha o Sr, está lá à tua espera.”
E eu seguia.
“ – Olha Macedo do Mato! O Sr. também vai virar para Macedo do Mato!”
Gargalhada e especulação geral
“Que espectáculo, a hospitalidade e prontificação transmontanas… Vai de propósito levar-nos à aldeia!”
Houve quem especulasse mais:
“ – Se calhar é da terra e nós a pensarmos que nos está a ajudar… Às tantas é vizinho do Sr Morais!” Outra gargalhada geral.
Chegamos a Macedo do Mato, perseguindo o Opel Sucata. Na praça, o Sr. faz inversão de marcha e o meu pai acena para parar:
“- Por acaso não conhece o Sr. Morais? Psicólogo, solteiro? Daqui da aldeia?
- Eu não conheço, desculpe, eu não sou daqui.
- O Sr veio aqui de propósito para nos indicar o caminho?”
Soltou um
“- Eu bim…” com o ar mais genuíno e simpático do Mundo. Agradecemos profundamente. Isto nunca aconteceria em Lisboa, concluímos.

Esperava-nos mais uma odisseia: encontrar o Sr Morais. Avistámos um Sr. de bengala. Perguntámos pelo Sr Morais, psicólogo, solteiro… ao que respondeu
“ – Eu sou Morais.”
A frontalidade espontânea do meu pai:
“ – Pois, mas não é de si que eu estou à procura.
- Eu xeiiii. É do meu primo. Sigam-me.”
Acompanhámos os seus passos lentamente, ao ritmo da bengala.
Bate à porta.
Não responde.
O meu pai volta a telefonar.
Não atende o telemóvel.
Diz-nos o outro Sr Morais:
“ – Bão até aquela casa e perguntem à irmã. Ele debe estar na casa do irmão, mais acima…!”

(a irmã diz-nos mais acima)
Ali bamos nós. Chegamos a casa do irmão.
Apitamos. Nada.
O meu pai telefona. Nada.
Apitamos mais uma dezena de vezes.
E nada.
Grito do primeiro derrotado:
“- Vamos mas é embora!”
Eu respondo:
“- Com tanta luta, agora não podemos desistir…! Pai vai lá bater à porta.”
Uma Srª aparece à porta.
“ – O Sr. Morais está?
- Está sim. Binde. Entrai.” O meu pai vai.
“- O Sr Morais está?”
“- Então não está a ver a cara feia dele aqui?”
O meu pai ri-se. Volta a olhar e confirma. Também não era aquele Sr Morais! Este era o irmão, com cara de podão.
Voltamos para trás… Passamos na casa do verdadeiro Sr Morais. Porta entreaberta, finalmente!
“- Ó Delfim, ainda bem que chegaste! Estava aqui sentado ao foguinho e deixei o telemóvel para lá, nem o ouvi.”
Sentamo-nos no escano. O Sr. Morais começa a falar eloquentemente e sabiamente sobre tudo. Soubera eu antes o que me esperava e teria vindo mais cedo. Embevecida, escutei atentamente a sapiência: a desertificação das aldeias – Já escrevi, Delfim, escrevi um artigo para os jornais daqui… nem imaginas como fiquei quando consultei as estatísticas. A pessoa mais nova aqui tem 10 anos. – os Judeus que faziam as alheiras para disfarçarem a sua origem; até aos reis de Portugal – D.João III defendeu os judeus ao princípio, mas depois arreou a cueca, como todos Delfim.

O Sr. Morais é assim, sem papas na língua, próprio de quem já não tem nada a temer: comunista reformado, divorciado a caminho dos 69 anos. Deixou a capital para se refugiar na reforma na sua terra Natal. Não lhe interessa mais o ruído. Só quer paz até ao fim. Ele e o sr D. Quixote, que não se importa de reler, em espanhol.

Anoitece.

Temos mesmo de ir embora, papá?

5 comentários:

Francisca Cortes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tânia Mealha disse...

Eu também gostava de conhecer o Sr. Morais, não é pelo facto de ele ser psicólogo e comunista, é mesmo pela forma como ele se expressa, juro ;)
Ah! Achei interessante o início Carnaval - Super Terça-feira (das eleições nos EUA)... lol

______ disse...

...Que belíssimo post...
A malta cá por baixo entreteve-se a levar com samba manhoso e imagens do Brasil.

Anónimo disse...

Macedo do Mato... Santa Terrinha onde os meus pais resolveram viver! É de facto excelente ouvir o Sr. Morais mas também o é ouvir os poucos sobreviventes daquele fim do mundo esquecido... Não há um céu com um azul igual...

Riafoge disse...

Não posso concordar mais com "af"... E para recordar e manter vivo esse "Fim de mundo esquecido" aqui fica: " http://macedodomato.blogspot.com/ "


Onde: Não há um céu com azul igual....